Os mitos sobre a privatização da Previdência Social

 Em artigo publicado no jornal Valor Econômico no dia 5 de dezembro, intitulado “Previdência e regime de capitalização”, os professores da FEA-USP Carlos Luque — também presidente da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) —, Simão Silber e Roberto Zagha descrevem uma série de mitos sobre o chamado regime de capitalização para a aposentadoria, uma das propostas para substituir o atual sistema da Previdência Social. Eles recorrem à obra “A Balada de Narayama”, escrita em 1956 Shichigoro Fukuzawa, para fazer uma analogia com a proposta.

 Os professores explicam que trata-se de uma lenda de um Japão pré-industrial e pobre sobre o abandono dos idosos aos 70 anos. Segundo eles, o tema da Balada é um filho que deve levar nas costas a mãe que chegou aos 70 anos saudável, vibrante, e de personalidade luminosa, a uma montanha onde, sozinha e sem recursos, deverá esperar a morte. E concluem que este sistema de aposentaria é inevitável num mundo pré-industrial sem recursos para manter o nível de consumo da população idosa. A história deu origem a um filme artístico em 1956 e outro mais cinematográfico em 1983 (Palma de Ouro de Cannes).

 De acordo com os professores, a Balada ilustra mitos que permeiam estas discussões, quatro em particular. O primeiro seria que num regime de capitalização o benefício de cada trabalhador é custeado pelas suas próprias contribuições e dos seus contratantes no passado: são contribuições pessoais a um fundo de poupança individual, às vezes subvencionado pelo governo.

Taxas de natalidade

 O mito é que aposentadoria passa a depender do que as pessoas pouparam. Na realidade, afirmam, como em qualquer regime de aposentadoria, as pessoas inativas consomem o que as pessoas ativas produzem. Os aposentados são portanto sempre financiados pelos trabalhadores ativos, independentemente do sistema previdenciário. Se número e produtividade dos ativos não forem suficientes, a produção não poderá atender a demanda. A solução será a da “Balada de Narayama”. Um regime de capitalização pode ser atuarialmente equilibrado, mas economicamente inviável.

 Os professores dizem ainda que um regime de capitalização tem dois outros problemas. Quem garante que os recursos serão bem aplicados? E quem garante que a poupança será suficiente? Se os poupadores investiram mal terão uma renda insuficiente para manter seu padrão de vida e correm o risco de empobrecimento. Se tiverem pouco anos de vida depois de aposentados deixarão um fundo a seus herdeiros. Se tiverem muitos anos de vida a poupança poderá acabar antes do tempo. Estes dois riscos: risco de investimento e risco de longevidade recaem sobre o indivíduo. Num regime de participação estes riscos são absorvidos pela coletividade.

 O segundo mito, afirmam, é que o problema de aposentadorias no Brasil pode ser resolvido sem crescimento. Taxas de natalidade em queda fazem com que a realidade demográfica brasileira seja de uma população onde os ativos devem sustentar um número crescente de inativos: 5 ativos sustentam hoje 1 inativo. Estes 5 deverão sustentar 2 inativos em 2040 e 3 em 2060. Ha poucas dúvidas sobre estas projeções. Ignorar o crescimento na “reforma” da Previdência é um erro estratégico tão grave quanto ignorar a evolução demográfica, dizem eles.

 Os professores alertam que ignorando a repartição da renda entre trabalho e capital, uma maneira de resolver o problema seria aumentando a produtividade dos 5 ativos. Se os 5 ativos produzirem R$ 100 hoje, terão que dividir estes R$ 100 entre 6. Cada um terá uma renda de R$ 16,6. Para a renda per capita permanecer a mesma os 5 ativos terão que produzir 116 (7 vezes 16,6) em 2040 e 132.8 (8 vezes 16,6) em 2060. A implicação é que a taxa de crescimento do PIB per capita entre 2020 e 2060 deveria ser de 0,7% ao ano. Esta taxa de crescimento surpreendentemente baixa reflete o efeito cumulativo do crescimento em 40 anos e um envelhecimento da população que é gradual.

Padrão de vida

 Mas sem crescimento a queda de consumo é inevitável e a tragédia de Narayama se torna realidade. Para que os ativos possam manter seu nível de consumo, deverão sacrificar o consumo dos idosos. Com crescimento o problema da Previdência desaparece. A preocupação deve ser com o enfoque atual onde o déficit da Previdência recebe mais atenção do que a aceleração do crescimento da economia.

 Para eles, é evidente que os benefícios e o financiamento da Previdência devem evoluir com mudanças demográficas e que a previdência no Brasil tem várias imperfeições. Estes aspectos têm atraído atenção e discussão enquanto as consequências de uma economia estagnada sobre a solvência da previdência tem sido ignoradas.

 Os professores ressaltam que nas discussões recentes a lógica econômica se inverteu, criando-se a convicção errônea de que reformando a Previdência os problemas da economia brasileira serão equacionados quando a realidade é exatamente a oposta. A aritmética simples do problema foi obscurecida pelos aspectos financeiros da Previdência, importantes sem dúvida, mas que contêm somente uma parte do problema.

 Segundo eles, o padrão de vida de um aposentado vai depender da sua habilidade de consumir bens e serviços produzidos pela população ativa. Tanto o regime de repartição como o de capitalização são formas de organizar a parcela da produção a qual os inativos terão direito. É portanto um erro grave se focar exclusivamente como as aposentadorias são financiadas ignorando a evolução do PIB e sua repartição entre ativos e inativos. Ignorar o crescimento do PIB numa reforma da Previdência é um erro estratégico tão grave quanto ignorar a evolução demográfica.

 Lógica econômica

 O terceiro mito, destacam, é o de que a transição de um regime de participação para um regime de capitalização pode ser feito sem um alto custo fiscal. A transição de um regime de repartição a um de capitalização significa que os aportes dos trabalhadores a suas contas individuais não mais serão disponíveis para o regime de repartição. Em países onde tal transição se fez a queda das contribuições dos trabalhadores ativos migrando ao regime de capitalização criou um custo fiscal alto e acima do projetado.

 O quarto mito é o de que num regime de capitalização, o governo não mais se envolve no financiamento de aposentadorias. A realidade é mais complexa, afirmam. Se num regime de capitalização o rendimento da poupança for baixo, ou se a incidência de pobreza dos aposentados aumenta a níveis socialmente inaceitáveis, o governo deverá intervir. É impensável que o governo não intervirá quando um problema afeta uma parcela significativa da sociedade.

Para os professores, a “reforma” da Previdência deve ser repensada num contexto de crescimento econômico, aumento do PIB per capita, aumento da participação da força de trabalho, e redução da informalidade. É importante lembrar que a reforma que foi ao Congresso não vai gerar ganhos fiscais significativos no curto prazo.

 Segundo eles, o problema da previdência vai se manifestar sobre um período de 40 anos. Não há lógica econômica que justifique um país com problemas imediatos de desemprego alto, crescimento anêmico e problemas estruturais graves, eleja estrategicamente um regime de capitalização como instrumento de reforma da Previdência e a “reforma” da Previdência como o principal instrumento para recuperar nossa capacidade de crescimento.

 

     Joanne Mota – Portal CTB

 

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