Opinião: Balanço da manifestação de 29 de maio em Campo Grande

Opinião: Balanço da manifestação de 29 de maio em Campo Grande

   Há vinte e cinco anos, na região rural do município de Eldorado do Carajás, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) organizou uma marcha com mais de mil trabalhadores pela reforma agrária, direito previsto na Constituição Federal.

   A manifestação foi interceptada pela Polícia Militar que tinha ordens para usar a força e  armas de fogo contra um ato pacífico.

   Vinte e um trabalhadores rurais foram assassinados, sendo dez com tiros à queima-roupa. Nenhum dos 155 (cento e cinquenta e cinco) policiais que participaram da operação foi punido criminalmente.

   A marcha, organizada em fileiras, homens e mulheres à pé, bandeiras tremulando, cortando a paisagem de um Brasil rural, tornou-se o símbolo do maior movimento social campesino do País.

   Em seguida, as manifestações pelo direito à Terra foram criminalizadas pelas instituições governamentais, transformando o debate político e legislativo em luta interna. Sobre o MST lançaram-se a mídia, a perseguição judicial, o poder policial. A luta era desigual.

   Aos olhos da população urbana, trabalhadores rurais foram apresentados como guerrilheiros. Parcela da opinião pública dos centros urbanos passou a acreditar na narrativa de que o MST, que teve 21 de seus membros assassinados pela Polícia, alguns a queima roupa, eram, na verdade, criminosos.

   Aprofundou-se a ruptura entre o campo e a cidade.

   Vinte e cinco anos depois desses assassinatos e de uma campanha de desconstrução da imagem do MST, em meio à maior pandemia do novo século, jovens do ensino médio e superior que à época do massacre de Eldorado do Carajás nem eram nascidos, buscaram organizar o primeiro ato contra o genocídio promovido pelo governo federal, demandando vacinação, auxílio emergencial e investimentos em ciência e educação.

   Ao tentar organizar o movimento urbano de reivindicação de direitos, esses jovens adultos, alguns adolescentes ainda, depararam-se com a dificuldade de fazer uma manifestação mantendo o isolamento social para garantir a segurança e a vida dos participantes.

   Havia o receio, justificado, de que essa luta por direitos resultasse em uma contaminação dos manifestantes no meio da pandemia, sobrecarregando um sistema de saúde com escassez de material hospitalar e leitos de UTI e desamparado pela falta de vacinas. As estudantes de medicina e enfermagem que elaboraram os protocolos de biossegurança ponderavam, com preocupação, a dificuldade de se conter a aglomeração.

   A melhor forma encontrada de se organizar o ato com a garantia do distanciamento social seria por meio da construção de uma marcha, em fileira, organizada dentro do centro urbano. Mas quem seria capaz de organizar manifestantes de origens, idades, orientações políticas tão diversas para ficarem em fileiras e obedecerem o distanciamento social?

   Nenhum dos movimentos sociais que participavam dos debates para a construção da manifestação do dia 29 de maio tinha a capacidade, a autoridade e o conhecimento para organizar uma marcha de tal proporção no meio de uma capital urbana. Nenhuma, exceto o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, cuja simbologia da marcha era reconhecida por todos.

   Ocorre que os trabalhadores do MST de Mato Grosso do Sul estavam, em sua grande maioria, recolhidos nas áreas rurais, protegendo-se da pandemia, evitando a circulação pela capital, observando o isolamento social e aguardando a vacinação.

   A liderança Maria Helena Faria, da Frente Brasil Popular, que intermediou o diálogo com todas as entidades que participaram do movimento, dando voz e ouvindo a todos, construindo consensos, trouxe para o debate a possibilidade de uma participação mais organizacional do MST no ato do dia 29 de maio.

   A liderança do MST em Campo Grande/MS, diante da constatação de que a organização do evento teria muita dificuldade em construir uma marcha, a fim de propiciar a segurança sanitária dos estudantes e dos manifestantes, mobilizou alguns de seus integrantes para garantir que a marcha fosse realizada, de maneira ordenada, observando-se o distanciamento social.

   Ou seja, vinte cinco anos depois do Massacre de Eldorado do Carajás, um quarto de século depois da criminalização do movimento social e da assimilação da opinião popular urbana de que os trabalhadores rurais sem-terra seriam uma organização guerrilheira, o MST voltou a organizar uma de suas marchas.

   Desta vez, a marcha teve como objetivo proteger a saúde e a vida dos estudantes de Campo Grande/MS, jovens que não eram nascidos ainda quando a marcha tornou-se símbolo, jovens urbanos, filhos daqueles que talvez tenham acreditado que o MST era uma guerrilha rural.

   Com essa nova marcha, o MST não veio cobrar a morte dos seus vinte e um trabalhadores rurais. Não. O MST veio garantir a saúde e a vida das centenas de estudantes e trabalhadores urbanos que desejavam protestar, desejavam exercer o direito de manifestar-se contra o governo que os está matando e privando de um futuro.

   O MST ajudou a organizar a manifestação do dia 29 de maio numa marcha em três grandes fileiras pelas ruas e avenidas da capital de Mato Grosso do Sul, para que o ato não fosse criminalizado, para que os participantes não se contaminassem, para que o vírus não se propagasse, para que houvesse vida.

   Isso não aparecerá nos grandes meios de comunicação. Mas quem participou da manifestação teve o privilégio de ver o que não será mostrado: a marcha, esse símbolo, ganhando sangue novo, reinventando-se, transformando as atrocidades que a marcaram num ato de amor pelo próximo, num ato de proteção dos filhos de um urbano que já olhou com preconceito para a própria marcha.

   Importante ressaltar que essa ressignificação e essa construção da marcha, foi feita por lideranças femininas. Marina R. Nunes Viana, dirigente estadual do MST/MS, que idealizou e instruiu a construção das fileiras, Kahuanna Stragliotto Schiavo e Aline Fernanda Alves Ribeiro, jovens estudantes de medicina e enfermagem, responsáveis pelos protocolos de biossegurança, Maria Helena Faria, da Frente Brasil Popular e Cléo Gomes, representante do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFMS e dos Institutos Federais, responsáveis pela articulação política do movimento.

   Se a cisão criada entre os trabalhadores do campo e da cidade foi parcialmente suturada hoje, o foi pelas mãos de mulheres. Se a lembrança de uma atrocidade contra os trabalhadores sem-terra foi transformada num ato de proteção e cuidado para com jovens estudantes urbanos buscando direitos, essa alquimia foi feita, principalmente, por lideranças femininas.

   O ato de hoje, dia 29 de maio de 2021, mostrou que o projeto político de dividir o país, o projeto político de abandono do outro, o projeto de exclusão dos diferentes, o projeto de preconceito em razão de gênero, o projeto político de ignorar a ciência, o projeto político de criminalizar movimentos sociais não vai prosperar. Há um movimento em marcha e nessa marcha pulsa tanto o sangue de Eldorado dos Carajás, quanto o sangue da juventude.

Henrique Komatsu

Coordenador de Comunicação do SINDJUFE/MS

(Foto: Sérgio Souza Júnior)

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