Descaso com agricultura familiar pode comprometer alimentação saudável
Em tempos de pandemia pelo novo coronavírus, a qualidade da alimentação torna-se ainda mais importante, mas programa federal de segurança alimentar padece de falta de recursos
Reconhecido internacionalmente pela eficácia no combate à fome, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) padece de falta de recursos no governo Jair Bolsonaro. Criado durante a administração Luiz Inácio Lula da Silva, o PAA foi pensado para evitar a fome em situações de crise prolongada, como a seca na região Nordeste. “O objetivo era evitar que as pessoas precisassem migrar por falta de alimentos, e foi um programa muito bem sucedido”, diz o ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), José Graziano.
A lógica agora é a mesma. Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, entre 2003 e 2004, Graziano cobra apoio para a agricultura familiar durante a pandemia do novo coronavírus. A qualidade da alimentação torna-se ainda mais crucial para a segurança alimentar do país, especialmente a da população mais vulnerável.
“Queremos fortalecer o PAA. O governo prometeu R$ 500 milhões, mas precisamos de mais. Precisamos de pelo menos R$ 1 bilhão. Está na hora de fortalecer o PAA e as organizações que pertencem à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)”, ressalta.
Destinado a viabilizar a compra direta de produtores familiares e a entrega de alimentos em estabelecimentos cadastrados de saúde, educação e assistência social, o PAA é apontado por especialistas em segurança alimentar como o instrumento mais ágil para socorrer agricultores e pessoas em situação de vulnerabilidade durante o período de calamidade pública.
Risco à saúde
Com a falta de recursos para o PAA a qualidade dos produtos consumidos pela população brasileira também ficará comprometida. Segundo Silvio Porto, ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o desmonte dos programas voltados para a agricultura familiar compromete diretamente a qualidade dos produtos oferecidos nas prateleiras, e, diante da covid-19, esse processo inevitavelmente se intensificará.
Em entrevista ao site Brasil de Fato, Porto explica que sem as verbas que incentivam e auxiliam a produção agroecológica, os camponeses encontram entraves ainda maiores para comercializar a produção em meio à pandemia.
“Teremos a redução da disponibilidade de alimentos frescos, sobretudo frutas, verduras e legumes. Os hortigranjeiros, de forma geral, esses sim, efetivamente, podem ter um processo de desabastecimento devido aos canais de comercialização que se rompem. Ao mesmo tempo, não são criadas novas alternativas no sentido de dar vazão [à produção]”, afirma.
Professor e pesquisador da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), Porto alerta que a diminuição da oferta impactara o preço dos produtos e dificultará ainda mais o acesso aos alimentos considerados mais saudáveis. A população, em isolamento social, será levada a consumir produtos industrializados e ultra processados, disponibilizados pelas grandes empresas alimentícias. A maioria desses alimentos, explica o professor, são geradores de doenças. Doenças que enquadram a população no grupo de risco para o coronavírus, como diabetes e hipertensão, também são causadas por maus hábitos alimentares.
“Teremos uma situação em que a população poderá garantir seu abastecimento, mas com produtos de péssima qualidade. Vamos estar desestruturando, sobretudo, canais de comercialização e de produção de alimentos mais saudáveis, oriundos da agricultura familiar e camponesa, que será, sem dúvida, a mais afetada”, critica o especialista, que foi diretor da Conab entre 2003 e 2013. O órgão, sob o governo Bolsonaro, anunciou o fechamento de 27 unidades de sua rede de armazéns, localizadas em regiões onde setor privado tem maior presença no mercado. “Isso também compromete o auxílio emergencial à populações carentes durante a pandemia.”
Sem resposta
Apresentado há três semanas, o documento Comida Saudável para o Povo detalha medidas para a aplicação emergencial de R$ 1 bilhão no PAA, abrangendo 150 mil famílias do campo que, assim, poderão entregar 300 mil toneladas de alimentos nos próximos três meses.
Até agora, no entanto, o governo Bolsonaro ainda não respondeu às mais 770 organizações sociais, redes e movimentos que pedem aos ministérios da Cidadania e da Agricultura que adquiram a produção da agricultura familiar e destinem esses alimentos à população mais pobre nas cidades, por meio do PAA, durante o período que durar a pandemia.
“Eu quero emprestar meu apoio à ANA e às centenas de entidades que subscrevem a petição ao governo federal para aumentar os recursos do PAA nesta pandemia que estamos vivendo”, completa o ex-ministro Graziano.
Sob responsabilidade dos ministérios da Cidadania e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o PAA tem previsão orçamentária de R$ 186 milhões ao longo de 2020. Mas R$ 66 milhões permanecem contingenciados pelo Ministério da Economia e, até o momento, nenhum recurso foi liberado.
Em 2012, ano em que foi desembolsado o maior volume de recursos pelo programa, foram operacionalizados cerca de R$ 850 milhões, beneficiando aproximadamente 185 mil famílias agricultoras, que forneceram 297 mil toneladas de alimentos, com 380 itens diferentes. Naquele ano, o programa envolveu a participação de mais de 24 mil organizações socioassistenciais.
Fonte: Redação RBA, com informações da ANA e do Brasil de Fato – Foto: AENPARANÁ