Alto uso de MPs reflete fragilidade do governo, mas agenda econômica avança no Congresso
Bolsonaro abusa de medidas provisórias, o que indica dificuldade na relação com o parlamento. Mas perfil do Congresso faz andar pautas como as de flexibilização trabalhista
O governo editou 118 medidas provisórias desde o seu primeiro dia até 30 de junho último. É como se do Planalto saísse uma MP a cada quatro ou cinco dias. Algumas pouco relevantes, outras editadas até para revogar outra MP. Mais da metade ainda está em tramitação. Em torno de 20% viraram leis.
Para observadores, o uso excessivo – Bolsonaro é um recordista de MPs – mostra fraqueza do Executivo. Mas a agenda econômica, conservadora na essência, avança. Menos por mérito do governo e mais por coincidir com o perfil do Congresso.
Basta ver o teor de algumas das principais medidas que seguiram sua tramitação e se tornaram lei. Uma delas é a 881, de 2019, que resultou na Lei 13.874. A chamada “MP da Liberdade Econômica” tratava de medidas de desburocratização e alterou regras inclusive trabalhistas. A questão trabalhista, por sinal, está quase sempre presente em alguma medida.
Caso da MP 927, aprovada na Câmara e em tramitação no Senado, que mexe com itens como férias, jornada e banco de horas. Ou a 936, prevendo acordos individuais para redução de salário e jornada durante o período da pandemia. Essa medida chegou a ser questionada judicial, mas acabou referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Já a MP 905, do contrato de trabalho “verde e amarelo“, representou uma derrota para o Planalto, que viu o texto “caducar” e perder a validade.
Regidas pelo artigo 62 da Constituição, as medidas provisórias podem ser adotadas – pelo menos assim diz a Carta – em casos de “relevância e urgência”. Não podem tratar de temas como direitos e partidos políticos, Direito penal ou processual, organização do Judiciário e do Ministério Público, diretrizes orçamentárias ou sequestro de bens. São válidas por 60 dias, prorrogáveis por igual período. E não podem ser reeditadas na mesma sessão legislativa.
Proposta devolvida
Às vezes, as MPs parecem testar limites da relação entre governo e parlamento. Em 12 de junho, Dia dos Namorados, o presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), anunciou a devolução da MP 979. A medida permitia ao ministro da Educação (na época, ainda Abraham Weintraub) nomear reitores de instituições federais sem ouvir as comunidades acadêmicas. Alcolumbre disse que a MP violava a Constituição, enquanto partidos de oposição já acionavam o Supremo Tribunal Federal.
Para o analista político Marcos Verlaine, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o modus operandi demonstra que o governo Bolsonaro “é muito errático, a começar por ele”. As dificuldades começaram quando o presidente tentou montar um ministério sem vínculo com o parlamento, pelo menos no campo das lideranças. “O processo institucional do Congresso passa pelos líderes. Frentes parlamentares não são necessariamente instâncias de decisão. É o líder que indica o relator, o presidente da comissão”, observa.
E o governo segue tendo problemas por não dispor de líderes “com consistência”, avalia o assessor. Isso ajuda a explicar o uso de medidas provisórias. “MP tem força de lei, e isso facilita para o governo. Mas quase todas foram alteradas”, aponta Verlaine. Nesse sentido, as medidas também passam a pertencer ao Congresso Nacional. “O deputado e o senador têm uma visão mais abrangente que o governo, o ministério. Eles voltam dos estados e trazem muitas demandas, que acabam por se transformar em ideias, projetos. Isso acontece também com as medidas provisórias”, acrescenta.
‘Fundão do baixo clero’
Outro item que exemplifica a difícil relação de Bolsonaro com o Congresso foi a inexpressividade de sua atuação parlamentar. “Embora tenha ficado 28 anos na Câmara, ele não se envolveu com nenhuma iniciativa relevante. Ficava naquelas diatribes dele”, afirma o analista do Diap, lembrando que o então deputado é apenas lembrado pelos arroubos e declarações agressivas.
Bolsonaro era “da turma do fundão do baixo clero”, define o professor Cláudio Couto, do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) e coordenador do mestrado profissional em Gestão e Políticas Públicas. Ele observa que o atual presidente nunca presidiu uma comissão temática, exerceu liderança partidária ou mesmo relatou um projeto importante. Recorda-se apenas de envolvimento maior do então deputado para aprovar um projeto sobre o uso da chamada fosfoetanolamina sintética, batizada de “pílula do câncer”. Uma questão bastante controversa, no que agora parece ser uma prévia do debate sobre a cloroquina.
Couto lembra que o governo Collor também teve um ritmo “frenético” de MPs. Um fator em comum com o atual governo é a ausência de base sólida no Congresso. Além das medidas provisórias, Bolsonaro também recorre constantemente aos decretos, lembra o professor. “É um indicativo de fragilidade.”
Pouco diálogo
Bolsonaro recorreu a esse expediente bem mais do que Lula e Dilma em igual período (primeiros 18 meses). E com resultados piores: enquanto o atual governo viu aproximadamente 20% de suas 118 MPs virarem leis, no primeiro mandato de Lula, de janeiro de 2003 a junho de 2004, isso aconteceu com mais de 90% de um total de 92 medidas. A comparação com a gestão FHC é prejudicada porque antes era possível reeditar medidas provisórias, o que acontecia com frequência.
Couto pondera que os conceitos de “urgência e relevância” para as MPs nunca foram levados a sério por nenhum governo. De qualquer forma, o professor observa que o expediente pode funcionar melhor quando há uma relação mais harmônica, ou de mais diálogo, entre Executivo e Legislativo.
Não é bem o caso da gestão Bolsonaro, que só agora parece tentar organizar certa base de sustentação – com o chamado “Centrão”. Mas Couto vê a ação com ceticismo, seja pela pouca capacidade de “aprendizagem” do presidente, como por sua natureza refratária à moderação. Compara o atual presidente com Michel Temer, que foi um deputado com atuação relevante, inclusive exercendo mais de uma vez a presidência da Câmara. Ou seja, que sabia tratar com o parlamento.
Assim, o que vem sendo aprovado no Congresso mostra mais o interesse da própria Casa do que a capacidade de articulação. “É um governo cuja agenda legislativa é conservadora e, às vezes, até mesmo reacionária. Nessa área (econômica), há consenso com uma maioria no Congresso.” Couto cita o exemplo da reforma da Previdência, aprovada mais por iniciativa e gestão do próprio parlamento. É assim que deverão passar outras medidas: “Vão ser aprovadas não pelos belos olhos do presidente”.
Convergência de conteúdo
“É o perfil do Congresso”, concorda Verlaine, do Diap. “Há uma total convergência em termos de conteúdo. O Maia (Rodrigo Maia, DEM-RJ, presidente da Câmara) faz uma disputa política, mas apoia a agenda econômica”, observa.
Ele também usa o exemplo da reforma da Previdência, em 2019. “O que o Congresso fez foi tirar as coisas mais abjetas e as gorduras.” Mas manteve a essência fiscalista, acrescenta. Os objetivos não se alteraram: reduzir custos, diminui o valor de benefícios e dificultar o acesso à aposentadoria. O analista político, inclusive, não descarta uma nova “reforma”, desta vez para pegar o pessoal da ativa. “Não será novidade se isso acontecer. E sem regra de transição”, alerta.
O professor Wagner Romão, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), aponta um fator “recorrente” no atual governo: tentar repetir temas rejeitados em medidas provisórias. “Por outro lado, a linha de Bolsonaro tem sido de tentar impor. O Executivo tem o poder de criar legislação, que não pode ser absoluto.” Assim, o governo estaria usando as MPs como uma espécie de “atalho” para legislar.
Pauta tem identificação
Nem sempre dá certo. Romão cita a “MP dos reitores”, devolvida ao Planalto, “tal era o nível de ataque à Constituição, à autonomia das universidades”. Pouco depois disso, Weintraub caiu.
Ele também aponta a afinidade de agendas, pelo menos na questão econômica, enquanto na política há certa disputa entre uma direita mais “tradicional” a extrema direita. “Existe uma queda de braço, relacionada às próprias eleições municipais. Isso pode ter influência nesse tensionamento.” Mas Romão acrescenta que a pauta econômica “se coaduna com a maioria liberal no Congresso, liberal na economia”. E uma das principais características “talvez seja mesmo a flexibilização de direitos trabalhistas”.
O professor entende que há situações que justificam o uso de MPs, porém manifestação preocupação com eventual desrespeito aos “ritos” exigidos. “A gente vê temas passando sem diálogo, sem debate. Acho que estamos vivendo um momento perigoso.” Para ele, alguns assuntos mais polêmicos – como o marco regulatório do saneamento e o projeto sobre fake news – deveriam ser discutidos em outro momento. “Está se passando muita coisa sem o devido debate”, afirma.
As medidas provisórias devem ser mantidas, acredita Romão, defendendo mudanças pontuais em seu funcionamento, sugerindo diminuição do prazo de vigência, por exemplo. “Até para forçar o Executivo a mandar as medidas quando elas forem efetivamente necessárias”, argumenta.
Mas ele identifica um problema no governo atual. “As MPs de Bolsonaro têm esse componente autoritário, de um presidente que não preza pelo diálogo, pela construção coletiva.”
Fonte: Rede Brasil Atual