Motoboys: entregadores podem contagiar e serem contagiados sem proteção e cuidados
Sem autorização para quarentena, muitos saem às ruas sem proteção
Durante a pandemia de Covid-19, motociclistas que fazem entrega de produtos têm ficado expostos ao contágio da doença. Parte deles não foi liberada pelos empregadores para permanecer em casa, para cumprir medidas de isolamento e quarentena, e uma parcela daqueles que têm saído às ruas realiza as atividades desprotegida, conforme apurou a Agência Brasil.
Com a situação, os profissionais também podem acabar transmitindo o coronavírus para suas famílias e clientes. Em muitos casos, a contaminação pode ocorrer sem que se saiba, já que existem pessoas assintomáticas, aquelas que têm a doença e não apresentam sintomas.
Na página do Facebook do Sindicato dos Mensageiros, Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo (SindimotoSP), mais conhecido como Sindicato dos Motoboys, há inúmeros relatos sobre o assunto. Em uma postagem, um deles aponta a omissão do dono do restaurante onde trabalha, por não ter buscado orientar os empregados sobre os cuidados necessários durante o exercício de suas funções.
Pela página do sindicato, também se observa que profissionais da categoria têm improvisado diante da falta de fornecimento de itens capazes de protegê-los, como álcool em gel. Um deles, por exemplo, sugere que os colegas que não encontrarem as máscaras respiratórias para comprar façam como ele e sobreponham folhas de lenço umedecido, no lugar das máscaras. A substituição, no entanto, é inadequada, já que as máscaras realmente eficazes na proteção têm características específicas, conforme cita o Protocolo de Tratamento do Novo Coronavírus, do Ministério da Saúde.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, destaca que pessoas com suspeita da doença devem usar máscara cirúrgica e que as de pano e as de algodão ou gaze não são recomendadas para essa finalidade.
O SindimotoSP, inclusive, promoveu uma ação para distribuir kits com uma embalagem de 50 gramas de álcool em gel 70% e outra para limpeza do aparelho celular. No total, mais de mil motoboys foram retirar seus kits.
Perspectiva do trabalhador
Há cinco meses prestando serviço a aplicativos de delivery, Kennedy de Oliveira tem trabalhado sob risco de contaminação por coronavírus. Ele diz que não recebeu, até o momento, álcool em gel e que tem limpado as mãos apenas quando faz alguma parada onde o produto seja disponibilizado. “Eu uso álcool em gel quando eu chego ao estabelecimento [onde retira o produto para entrega] e está disponível para a gente usar”, explicou o motoboy à reportagem, em um intervalo entre uma entrega e outra.
Perguntado sobre quantas entregas faz a cada dia, Kennedy responde que a quantidade varia bastante, mas que “motoboys mais dedicados e com tempo livre” completam 22, em média. Isso indica que uma eventual transmissão do coronavírus iniciada nesse meio poderia avançar rapidamente.
O iFood, empresa em que Oliveira está cadastrado, tem encaminhado aos entregadores mensagens que orientam a limpar as bolsas de armazenamento dos alimentos e a entregar as encomendas sem ter contato físico com os clientes, deixando-as em locais como caixas de correio.
Os clientes, por sua vez, são estimulados a efetuar pagamento pelo aplicativo. “O mês de março continua com muitos pedidos! Se tiver algum problema com o pedido ou desejar fazer a entrega sem contato físico, use o chat ou telefone para falar com o seu cliente”, diz uma das mensagens endereçadas aos entregadores.
Sobre os entregadores cadastrados em aplicativos, o presidente do Sindicato das Empresas de Distribuição das Entregas Rápidas do Estado de SP (Sedersp), Fernando Souza, ressalta que, como muitos deles cumprem jornada de trabalho extensa, podem já estar com a saúde fragilizada. Tais condições de trabalho podem representar um risco ainda maior à sua saúde, caso contraiam coronavírus, diz Souza,.
“Eles não têm nenhum tipo de higienização. E tem outra coisa: eles não se alimentam direito. Imagina como deve estar a resistência [imunológica] desses profissionais”, destaca Souza. Ele ressalta que o Sedersp não responde por empresas que fazem pedidos e entregas por meio online.
Responsabilidade do empregador
No último dia 18, o Ministério Público do Trabalho (MPT) emitiu a Nota Técnica nº 01/2020, que determina às empresas de transporte de passageiros e de transporte de mercadorias que funcionam por plataformas digitais a distribuição de produtos e equipamentos necessários à proteção e desinfecção. A norma também deixa claro que é obrigação das empresas “providenciar espaços para a higienização de veículos, bem como credenciar serviços de higienização, e, no caso de veículos locados, buscar negociar a higienização junto às locadoras, sem ônus para os trabalhadores.”
Fernando Souza afirma que a rede da Sedersp preocupa-se com o bem-estar dos trabalhadores e a prevenção. Ele diz que os empregadores têm procurado adotar medidas adicionais, como escalas de trabalho que permitam evitar aglomerações nos espaços, intercalando um dia de expediente com outro de folga. “Nossas empresas já têm um costume na questão da prevenção dos profissionais, até porque quem nós representamos é o sindicato patronal de empresas onde há funcionários celetistas, que são profissionais com registro em carteira”, explica Souza, acrescentando que dispõem de estrutura física onde os motoboys podem descansar.
O empresário Celio Vieira comanda uma equipe de cinco motoboys, que, entre 2015 e 2016, era sete vezes maior e também critica os aplicativos de motofrete, por entender que violam direitos dos trabalhadores. O quadro de funcionários de sua empresa, que funciona no bairro do Brooklin, na capital paulista, foi diminuindo quando vários deles pediram demissão para migrar para as companhias que operam por meio de dispositivos digitais.
Atualmente, cada um recebe salário em torno de R$ 3 mil, dos quais R$ 1,4 mil são fixos e lançados em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CPTS). O restante do valor varia conforme o número de entregas feitas ao longo do mês, semelhante a uma comissão de vendedor.
Segundo o empresário, os entregadores que trabalham com ele são, majoritariamente, casados e têm filhos ou familiares que dependem de sua renda. Vieira diz que foram eles que desejaram continuar trabalhando, “por já terem certo padrão de vida”. Em uma postagem no Facebook, contudo, Vieira escreveu: “Não reclame depois que a economia estiver afundada e você for demitido para reduzir gastos da empresa. Foi você quem optou por isso.”
Para evitar a transmissão do coronavírus em sua empresa, Vieira assumiu as tarefas administrativas e dispensou apenas os funcionários da área, porque utilizam transporte público para chegar ao local de trabalho. Enquanto não são acionados para realizar uma entrega, os motoboys ficam aguardando na empresa. “Agora muitos dos nossos clientes estão em home office. Então, a demanda não está sendo muito grande”, reconhece Vieira, que garante que tem se mantido alerta e evitado aglomerações dos subordinados na empresa.
Na opinião de Vieira, falta alinhamento no discurso das autoridades governamentais. Ele defende a normalização do comércio, mas teme que os registros de infectados por covid-19 estejam subnotificados. Até a tarde deste domingo (29), balanço do Ministério da Saúde informava um total de 4.256 casos confirmados e 136 mortes.
“É preciso haver educação do povo, não digo educação escolar, mas orientação. Não ficar um falando uma coisa, outro falando outra. O presidente fala que tem que trabalhar, o governador, que vai manter todo mundo em casa, e o prefeito fala que não vai fazer isso”, exemplificou Vieira.
Medo de demissão e denúncia
Entre os depoimentos publicados na página do SindimotoSP, muitos revelam insegurança entre os profissionais do ramo, incluindo o medo de perder o emprego. Um motoboy diz que, na empresa em que trabalha, os funcionários receberam ordem para trabalhar normalmente e que foram avisados de que quem não cumprir expediente terá os dias de falta descontados do salário.
Perguntado se as empresas que representa têm abonado faltas de entregadores que comunicam suspeita de Covid-19, mesmo se os sintomas forem leves, o presidente do Sedersp informou que as ausências só serão consideradas justificadas quando os funcionários apresentarem atestado. Em página criada para divulgar conteúdos relativos à doença, o iFood diz que “considera como comprovação automática válida o exame positivo do Covid-19 e avaliará outras evidências passíveis de comprovação do diagnóstico da doença”.
A Agência Brasil também obteve um posicionamento do MPT sobre o tema. Em entrevista, o procurador do trabalho Carlos Andrade destacou que um dos respaldos legais que podem ser evocados é o Parágrafo 3º do Artigo 3 da Lei nº 13.979/2020. O trecho diz que “será considerada falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo”. Tais medidas abrangem isolamento, quarentena e tratamentos médicos específicos.
Admitindo que muitas pessoas tenham receio de denunciar os empregadores, Andrade deu dicas sobre como os trabalhadores podem comprovar que seus direitos foram violados. As denúncias podem ser registradas pelo aplicativo de celular Pardal MPT – Denúncias, disponível para iOS e Android, ou no site do MPT, sob anonimato. O denunciante pode enviar ao órgão fotografias ou vídeos que mostrem que, em seu local de trabalho, há pessoas sem máscara ou luvas, ou que há, ali, aglomeração de pessoas, uma vez que estes são fatores que favorecem a transmissão do coronavírus.
Até a última quarta-feira (25), o MPT recebeu mais de 2.400 denúncias de violações trabalhistas relacionadas à covid-19.
Soluções
Na opinião de Fernando Souza, o governo federal precisa dar respostas à altura dos anseios da categoria. Souza diz que os R$ 600 de auxílio emergencial para pessoas de baixa renda, aprovados pelo Congresso Nacional, não compensam para os entregadores que trabalham para os empresários que compõem o Sedersp. Para ele, facilitar o acesso ao crédito também não é saída.
“Se o governo não entrar com uma medida provisória que dê cobertura para os profissionais, para as empresas, a gente não vai aguentar. Nosso volume de serviço aumentou? De jeito nenhum. Teve [crescimento] semanas atrás, mas essa demanda vai caindo. O governo tem que entrar com uma medida de seguro-desemprego por quatro meses. Não adianta falar: ‘Olha, tenho um financiamento aqui para você’. Poxa, mas você vai me dar dinheiro para que eu possa pegar no banco e me endividar? E como é que eu vou pagar isso depois? Não adianta o governo liberar bilhões [de reais] para as empresas poderem pagar depois na folha de pagamento”, afirma.
No caso do iFood, anunciou-se um fundo para os entregadores cadastrados na plataforma. “Para os entregadores parceiros independentes, o iFood criou um fundo solidário no valor de R$ 1 milhão para dar suporte àqueles que necessitem permanecer em quarentena. O entregador receberá do fundo um valor baseado na média dos seus repasses nos últimos 30 dias, proporcional aos 14 dias de quarentena”, define a empresa.
A Uber, por sua vez, soltou nota, na última terça-feira (24), comunicando as diretrizes do programa nacional de enfrentamento à covid-19.
“A Uber implementou uma política para que qualquer motorista ou entregador parceiro que for diagnosticado com a covid-19, ou tiver quarentena individual solicitada por uma autoridade de saúde ou por um médico pelo risco de disseminar a covid-19, receba assistência financeira por até 14 dias, enquanto estiver impossibilitado de usar a plataforma. O valor da assistência financeira vai ser baseado na média diária de ganhos do parceiro nos seis meses anteriores a 6 de março: caso ele esteja usando o app há menos tempo, a média vai ser baseada nos ganhos desde a primeira viagem ou entrega até o dia 6 de março de 2020”, explicou.
Outra medida da Uber é a implementação do programa Vale Saúde Sempre. Por meio do programa, os entregadores poderão ter descontos em consultas médicas em rede de atendimento privada e mais de 3 mil tipos de exames laboratoriais e de imagens e 20% de desconto em medicamentos nas farmácias credenciadas.
A Agência Brasil tentou contato com o SindimotoSP, mas não teve resposta até a publicação desta matéria. No último dia 17, a entidade divulgou nota em que declara que as medidas de proteção oferecidas pelas empresas ainda são “poucas diante do que faturam com o serviço do motoboy” e que muitas delas “estão minimizando os riscos de seus funcionários”.
Fonte: Agência Brasil – Foto: Marcelo Casal Jr.