O Covid-19 e a Função Social do Cidadão

O Covid-19 e a Função Social do Cidadão

 Por  Plínio José Tude Nakashian

  E cá estamos nós, a Sociedade Mundial, talvez em raro momento em que se pode afirmar, um organismo único dentro de todo o universo. Todos em uma mesma situação, o que, embora não na melhor circunstância, nos aproxima a todos, afinal, talvez pela primeira vez na história contemporânea mais recente, vivenciamos um momento de igualdade incondicional.

  Um algo invisível nos permitiu, enfim, enxergar-nos como seres iguais, com as mesmas necessidades, fragilidades e absoluto sentimento social de cooperação, seja entre vizinhos, bairros, estados, países, enfim, verdadeira cooperação mundial em prol de um único objetivo, a preservação da espécie humana.

  As primeiras linhas desse ensaio parecem ter sido tiradas de um comovente filme hollywoodiano, mas não, é a realidade, nua e crua.

  Não há nesse texto a pretensão ao afirmar, ainda que por classificação de novel a Função Social do Cidadão, exsurgida desse caos chamado Covid-19, mas como imperativo à reflexão do modus comportamental uníssono que deve prevalecer na humanidade de forma inerente à condição de pessoa humana partícipe da coletividade, detentor de direitos e sujeito de obrigações (positivas e negativas).

  A bem da verdade, a ideia essência não é novel, remonta o Contrato Social, de Jean-Jacques Rosseau, e, para ganhar ares contemporâneos, se faz híbrido ao entrelaçar-se até mesmo com a ideia extraída do Direito Penal do Inimigo, do penalista alemão Günther Jakobs, tudo para constituir o embrião da ideia que se pode ter, ao menos em ensaio, da Função Social do Cidadão.

  A ideia de função social ganha cada vez mais campo no Direito, traduzindo-se no conceito do que se espera, de forma inerente, em determinadas situações jurídicas, a exemplo da utilização da propriedade, cujo uso exige que se tenha uma finalidade produtiva para a terra, por exemplo.

  Ou ainda na realização de contratos, pois devem estes observar não só os direitos postos no pacto, mas o que externamente deve se ter por norte, ainda que alheio à relação jurídica obrigacional entre os contratantes, como a sociedade, o meio ambiente, a segurança, o trabalho, ou seja, bens que são caros e protegidos pela própria sociedade.

  Enfim, é instituto que se apresenta como elemento fundamental para o exercício do direito, verdadeira condição sine qua non que deve ser observada e respeitada, sob pena de nulidade de pleno direito.

  É certo que a Constituição de 1988, a exemplo de outras existentes pelo mundo, passou a definir bem o papel do Estado lato sensu, exigindo deveres ora para agir em salvaguarda aos direitos do cidadão (obrigação de fazer), ora para abster-se de modo a igualmente respeitar direitos reservados à pessoa humana (obrigação de não fazer).

  O que se pretende é, em reflexão profunda nesses tempos de “Corona”, compreender, à luz da hermenêutica jurídica, qual é, afinal, o papel do cidadão e quais as implicações de sua omissão perante o próximo, em vista da composição organizacional da sociedade que só espera um fazer do Estado.

  Cidadão é, em síntese, classificação conferida ao indivíduo que vive em sociedade, sujeito de direitos e obrigações definidas na Constituição Federal e legislação esparsa; é detentor do exercício pleno da cidadania, podendo participar do destino da sociedade pelo exercício do sufrágio entre outras situações que o alçam a destinatário de um múnus que lhe é inerente.

  É do cidadão o direito ao exercício da cidadania, gozando em sua plenitude de direitos civis, políticos e sociais, expressão máxima e inclusiva capaz de conferir igualdade entre todos os indivíduos de uma sociedade organizada.

  Desde os primórdios a ideia de sobrevivência une ou afasta as comunidades e povos, levando à formação da história da humanidade, fragmentada em eras e fatos históricos marcantes, sobretudo quando atinge um grande número de pessoas, como, por exemplo, as guerras e as epidemias, estas últimas, porém, quando em proporção mundial, como ocorrido recentemente, faz surgir deveres transitórios especiais ao cidadão, acostumado sempre a exigir quando se trata de matéria protecionista.

 Como se sabe, a saúde é direito fundamental social, razão pela qual está estampada como de obrigação plena e concorrente dos entes federados.

  De outro norte e por força de sua irradiação como essência fundamental, surge hodiernamente a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, o que antes era aplicável apenas às relações entre particulares e o Estado, agora passou-se a admitir a sua aplicação na relação entre particulares.

  E é aí que entra a Função social do Cidadão como elemento funcional do cidadão tanto em situações de normalidade, mas principalmente em situações de calamidade, aplicando-se, àquele que não se comporta como esperado, restrições ao próprio gozo de direitos que lhe são inerentes.

  Pode soar um tanto quanto radical, mas, como se sabe, a função social permeia exatamente a possibilidade de mitigação de direitos quando não observada, a exemplo da perda da propriedade improdutiva.

  Seria necessário toda uma adaptação ao ordenamento jurídico, assim como o manejo de novas normas constitucionais para a sua aplicação.

  Jakobs defende, e sua teoria ganhou ainda mais força após a queda das Torres Gêmeas nos EUA, o Direito Penal do Inimigo, que, em síntese, é aquele que se apresenta para aplicação ao integrante de organização criminosa terrorista, por exemplo.

  A esse, que ataca Estado e frontalmente a sociedade, assim compreendido o organismo composto pela universalidade de pessoas de um determinado país ou região geográfica, são mitigados direitos fundamentais que deveriam ser garantidores de todo o processo/julgamento pelos atos praticados, ainda que dita pessoa seja cidadão.

  Com essa premissa, diante de situação fática que demande superlativar exigências aos cidadãos para com a sociedade, obrigacionais que sejam (fazer ou deixar de fazer), a exemplo da quarentena, ou evitar contato em o uso de máscaras ou luvas, ou ainda o dever de precaver-se para não ser hospedeiro e transmissor da doença, sobretudo em período de pico da doença, poderão ser mitigados direitos fundamentais ou até mesmo serem suspensos por determinado período, ou ainda aplicando sanções pecuniárias, podendo até mesmo ser demandado judicialmente em ação que vise a reparação de direitos difusos.

  Na prática já se pode ver que essa mitigação tem previsão no ordenamento jurídico, já que em alguns municípios houve a decretação do toque de recolher, mitigando o direito de ir e vir consagrado na Carta Magna, em prol da segurança da própria sociedade, tendo como destinatário direto exatamente o cidadão, ou ainda em tempos de guerra, quando alguns direitos fundamentais são igualmente afastados.

  Registro que é ideia de cunho acadêmico a princípio, já que foi uma árdua batalha a de elevar inúmeros direitos fundamentais a um patamar constitucional, mas ao mesmo passo fica a reflexão se a manutenção desses direitos ao cidadão individualmente falando, não exige dele igualmente uma obrigação, exatamente como ocorre nas relações particulares, sinalagmáticas por essência.

  É como se houvesse verdadeiro pacto perpétuo concebido entre o cidadão e a sociedade, exigindo-se do primeiro determinado comportamento para com o seu semelhante, sob pena de o infrator ver afastados direitos sem os quais não pode exercitar sua cidadania de forma plena, ainda que temporariamente, como medida de sanção.

  Ora, mas, então, o cidadão infrator de tais regras sofreria verdadeiro banimento social, o que não tem previsão no ordenamento jurídico.

  Se analisarmos com detida acuidade as sanções aplicáveis em determinada situações, veremos que não é incomum a mitigação do exercício pleno da cidadania.

  O que acontece, por exemplo, com um condenado com trânsito em julgado, mesmo após o cumprimento integral e o regresso ao seio da sociedade?

  De pronto, além da grande dificuldade de conseguir um emprego pelo estigma de ser um ex-presidiário, não pode mais participar de concurso público, o que lhe é negado por quem precipuamente tem o dever de fomentar e garantir a ressocialização (tema para outro debate), o próprio Estado, que é exatamente a personificação da sociedade.

  E vou além, a própria Constituição Federal em seu art. 15, III, permite a cassação dos direitos políticos do condenado com sentença transitada em julgado enquanto perdurarem seus efeitos, ou seja, no período em que é cumprida a pena e até o seu cumprimento definitivo, não lhe é permitido votar.

  Diante de toda essa perspectiva, fica a pergunta: um cidadão que não atua em seu meio social com responsabilidade e pautado em seu inerente dever de cuidado para com o próximo, oriundo da efetiva solidariedade consagrada como direito fundamental de terceira geração, teria mesmo o direito de manter íntegros seus direitos de cidadão, ainda que a mitigação, repisa-se, seja afastada por período delimitado como medida sancionatória, ou em atingimentos aos seus direitos políticos, como o direito ao voto ou a se candidatar?

  Inobstante se trate a tese de aplicação ao indivíduo – a pessoa humana ou natural -, por corolário lógico as medidas também poderiam ser aplicadas à pessoa jurídica, que, igualmente, deve cumprir com sua função social junto a sociedade (matéria também para outro momento).

  Enfim, por meio de um microssistema legislativo especial, mais severo e mitigador, a Função social do Cidadão visa a dar cumprimento às normativas que exijam do cidadão, assim como se exige do Estado, prestações negativas e positivas para com os seus semelhantes e até mesmo com o meio ambiente, no afã da máxima proteção e segurança da sanidade da própria sociedade da qual faz parte e das gerações futuras, condição para que continue dela fazendo parte de forma plena, imprimindo ao cidadão uma condicionante que o permita gozar em plenitude de todos os direitos garantidos na Constituição, aí incluídos os políticos.

  O melhor dos mundos, decerto, seria que a sociedade prescindisse de tantas leis que a regulasse, mas, infelizmente, desde os primórdios, vinculamos as nossas condutas sociais apenas de acordo com o que nos é imposto, mesmo cientes, muitas das vezes, que omissões e ações podem custar a integridade física e moral dos nossos semelhantes, o que, definitivamente, não pode acontecer.

  A pergunta de ordem é: Qual é o nosso papel para com os nossos semelhantes (presentes e futuros)?

  Reflitamos!

Campo Grande, MS, 28 de março de 2020.

Plínio José Tude Nakashian

Advogado. Pós-graduado em Direito Civil, Negocial e Imobiliário pela LFG.

*Os artigos assinados refletem a opinião do seu autor

Imagens: Envato (sob licença)

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